Rio de Janeiro, . | Democracia, Política


Voto em lista fechada: uma anistia disfarçada de reforma política que fragiliza a democracia

Alexandre B. Cunha

1   Introdução

Conforme tem sido amplamente noticiado pela imprensa nacional, alguns congressistas brasileiros gostariam de implantar o voto em lista fechada. Discute-se neste texto as implicações da adoção de tal sistema eleitoral.

Relativamente às regras vigor (voto em lista aberta), a lista fechada subtrai poder dos eleitores e o transfere para os partidos políticos. Adicionalmente, a adoção da proposta provavelmente transformará os “caciques partidários” em uma casta privilegiada que dificilmente deixará o poder.

Vários parlamentares são alvos da Lava Jato e de outras operações. Tendo em vista a notória morosidade do STF em investigar e julgar os políticos com foro privilegiado, a reeleição em 2018 será quase que equivalente a uma garantia de impunidade. Desta forma, a adoção do voto em lista fechada terá o efeito de uma anistia para os diversos políticos que são ou serão investigados.

Não existe democracia sem alternância no poder. O voto em lista fechada dificulta a renovação da representação parlamentar (ou seja, a não reeleição de alguns parlamentares e a sua consequente substituição por outros políticos). Desta forma, a proposta em questão abala um dos pilares fundamentais do regime democrático.

O voto em lista fechada seria uma péssima ideia em qualquer circunstância. Na atual conjuntura política, ele funcionaria principalmente como uma anistia para os parlamentares envolvidos na Lava Jato e nas demais operações. Essencialmente, alguns congressistas querem ser anistiados e o preço da anistia que eles tanto almejam é a fragilização da democracia.

Este texto possui seis seções além desta introdução. Na seção 2 descreve-se o atual sistema eleitoral. Na seção 3 analisa-se o voto em lista fechada. Na seção 4 comparam-se os dois sistemas. Na seção 5 criticam-se alguns dos argumentos apresentados em favor da lista fechada. Na seção 6 discute-se como o temor da Lava Jato e de operações similares fez com que vários congressistas abraçassem a proposta do voto em lista fechada. Na seção 7 apresentam-se as considerações finais.

2   O atual sistema eleitoral

Atualmente, as eleições para deputados (federais e estaduais) e vereadores são realizadas através do sistema de lista aberta. O conceito de proporcionalidade é central nesse sistema, pois o número de deputados que um partido elege é proporcional ao total de votos recebidos pela legenda.

A título de ilustração, considere o caso do Rio Grande Sul. Aquele estado possui trinta representantes na Câmara dos Deputados. Suponha que a soma dos votos de todos os políticos do partido A que se candidataram à Câmara dos Deputados corresponda a 10% de todos os votos que eleitores atribuíram para os diversos candidatos a deputado federal. Tal resultado implica que o partido em questão terá 10% dos representantes do estado na Câmara. Como 10% de trinta é igual a três, esse último valor corresponde ao número de políticos de A que foram eleitos para o cargo de deputado federal. É importante ressaltar que os eleitos são justamente os três mais votados dentre os diversos candidatos de A.

No sistema de lista aberta, o voto realiza uma dupla função. Ao votar no candidato a do partido A, o eleitor está contribuindo para que o partido em questão tenha uma bancada na Câmara dos Deputados. Isso ocorre mesmo que a não seja eleito, pois os votos por ele recebidos serão contabilizados no total de votos do partido. Porém, o eleitor também está influenciando a ordenação dos diversos candidatos de A. Ou seja, no sistema de lista aberta, os candidatos de uma dada legenda são ordenados de acordo com os votos que cada um recebe individualmente. Desta forma, a ordenação é determinada pelo eleitor. Conforme será discutido mais à frente, esse último fato se constitui na principal diferença entre o sistema atual e o de voto em lista fechada.

Conclui-se esta seção com dois breves comentários. Os partidos podem realizar coligações. Em tal caso, os cálculos são feitos com base no total de votos dos partidos coligados. Por exemplo, se uma coligação composta pelos partidos B, C, D, E e F receber 20% dos votos gaúchos, então os seis candidatos mais votados daqueles cinco partidos serão eleitos. Adicionalmente, é facultado ao eleitor votar em um partido sem indicar um candidato. Nesse caso, o voto é contabilizado dentro do total de votos do partido (ou da coligação, se o partido participar de uma). Evidentemente, ao proceder dessa forma o leitor abdica do direito de influenciar a ordenação dos candidatos.

3   O sistema de lista fechada

A eleição com voto em lista fechada também possui um caráter proporcional. Assim como no sistema atual, cada partido elabora uma lista de candidatos; porém, a lista é ordenada pelo próprio partido. As listas são divulgadas para a população antes das eleições. Ao votar, o eleitor somente poderá escolher o partido. Ao contrário do que ocorre no sistema atual, a ordenação não é determinada pelo voto popular. Por tal motivo, a lista fechada também é conhecida como lista pré-ordenada.

Considere mais uma vez o caso do estado do Rio Grande do Sul. O partido A preparou uma lista com trinta candidatos, os senhores a1, a2,…, a29 e a30. A ordenação é tal que a1 é o primeiro da lista, a2 é o segundo etc. Suponha que partido receba 10% dos votos. Como o Rio Grande do Sul possui trinta representantes na Câmara Federal, o partido elegerá três deputados. Tendo em vista a ordenação previamente definida, as três vagas serão preenchidas pelos senhores a1, a2, e a3. O eleitor não tem como influenciar essa ordenação.

4   Uma breve comparação dos dois sistemas

Em ambos os sistemas é preciso ordenar os candidatos. A diferença fundamental entre eles é que no sistema atual o poder de ordenação pertence aos eleitores, ao passo que no sistema de lista fechada os partidos detêm tal poder. Os efeitos dessa transferência de poder dos eleitores para os partidos (ou seja, para os políticos) são ilustrados abaixo por meio de dois exemplos.

Exemplo 1

Considere uma situação extremamente simples. Há duas vagas para deputado federal. Existem dois partidos políticos, A e B. Cada partido tem dois candidatos. Os senhores a1 e a2 concorrem por A e b1 e b2 por B.

Suponha que eleição ocorra pelo sistema atual. Lembre que serão eleitos dois deputados e o eleitorado tem plena liberdade de votar em qualquer candidato. Por tal motivo, o povo está apto a eleger quaisquer dois dos quatro candidatos. Não é difícil mostrar que há seis possíveis combinações de vencedores: (a1,a2), (a1,b1), (a1,b2), (a2,b1), (a2,b2) e (b1,b2). Em outras palavras, o eleitorado tem o poder de atribuir a vitória a qualquer um desses seis pares de políticos.

Para tornar o exemplo mais concreto, assuma que a1, a2, b1 e b2 tenham, respectivamente, 10%, 40%, 15% e 35% dos votos. Como cada partido teve 50% dos votos, cada um deles elege um candidato. Os vencedores serão os senhores a2 e b2, pois cada um deles foi o mais votado em seu respectivo partido.

Considere agora o que acontece no sistema de lista fechada. Suponha que a1 e b1 estão no topo das listas dos seus respectivos partidos. Lembre que existem duas vagas. Se cada partido ocupar uma dessas vagas, então os eleitos serão a1 e b1. Se o partido A fizer dois deputados, então os vitoriosos serão a1 e a2, ao passo que b1 e b2 serão eleitos se o partido B ocupar as duas vagas. Não existe outro possível resultado. Ou seja, não há como o eleitorado conceder a vitória para os seguintes pares: (a1,b2), (a2,b1) e (a2,b2).

Observe que o par (a2,b2) seria o vencedor na eleição com lista aberta. E, conforme discutido no parágrafo anterior, é impossível que no sistema de lista fechada ocorra tal resultado. Os eleitores poderão eleger a2 ou b2, mas não ambos. Adicionalmente, eles serão obrigados a eleger pelo menos um dos dois candidatos mais impopulares, os senhores a1 e b1.

Este exemplo simples ilustra um importante efeito da adoção do sistema de lista fechada: ao se apropriarem do poder de ordenar os candidatos, os políticos passam a ter como (i) impedir que o povo eleja grupos de candidatos que poderiam ser vitoriosos no sistema de lista aberta e (ii) conceder assentos na Câmara Federal a indivíduos que de outra forma não seriam eleitos.

Exemplo 2

Considere mais uma vez o estado do Rio Grande do Sul. Suponha que dos seus atuais trinta deputados federais, vinte e cinco sejam integrantes do partido A e cinco do partido B. Assuma que todos os trinta deputados federais concorram à reeleição. O pleito ocorre pelo método de lista pré-ordenada. Por fim, o partido C também apresenta uma lista de candidatos.

É preciso introduzir alguma hipótese sobre as posições nas quais A e B listam os deputados que desejam ser reeleitos. A menos de situações excepcionais (por exemplo, um ex-governador resolve se candidatar a deputado federal), é de se esperar que os atuais congressistas tenham prioridade. Desta forma, assume-se que esses políticos estejam no topo da lista. Ou seja, os vinte e cinco deputados de A ocupam as vinte e cinco primeiras posições da lista daquele partido e os cinco de B ocupam as cinco primeiras posições da respectiva lista.

Como primeira aproximação, assuma que a eleição em análise reproduza o resultado da anterior (isto é, aquela que elegeu os atuais trinta deputados). Para referências futuras, esse resultado será denominado de cenário base. Em tal contexto, os partidos A, B, e C recebem exatamente as mesmas proporções de votos que receberam na última disputa. Desta forma, os tamanhos das bancadas não serão alterados. E como A e B posicionaram os atuais deputados no topo das suas listas, não haverá qualquer renovação na bancada do Rio Grande Sul. Ou seja, todos os trinta deputados são reeleitos.

Considere agora o seguinte exercício: suponha que todos os eleitores que no cenário base votaram no partido B votem nos outros partidos; qual será a renovação da câmara em tal contexto? A resposta é simples. O partido B não elegerá ninguém. As suas cinco cadeiras serão ocupadas por políticos de A e C. Adicionalmente, o fato de os atuais deputados de A estarem no topo da lista desse partido garante que todos eles serão reeleitos. Assim sendo, vinte e cinco de trinta deputados serão reeleitos. A renovação será bastante modesta. Adicionalmente, ela decorre da hipótese que pessoas que na eleição passada apoiaram B agora votam em outros partidos.

É possível ter uma renovação integral na bancada do Rio Grande do Sul? Sim. Suponha que todos os eleitores que no cenário base votam nos partidos A e B decidam apoiar C. Em tal conjuntura, nenhum deputado será reeleito.

Este exemplo ilustra uma importante característica do voto em lista fechada: se os partidos alocarem as primeiras posições das suas listas majoritariamente para os políticos que buscam reeleição, então uma expressiva renovação da câmara requer uma forte transferência, relativamente à última eleição, de votos de um ou mais partidos para as outras agremiações. Colocando de outra forma, no sistema de lista fechada dificilmente ocorrerá uma expressiva renovação da representação parlamentar sem que muitos eleitores passem a apoiar partidos distintos daqueles que eles votaram na eleição anterior. Esse fenômeno não ocorre com a lista aberta, pois o eleitor pode, de uma eleição para outra, trocar o político que ele apoia sem alterar o partido.

Em síntese, o voto em lista fechada transfere o poder de ordenar os candidatos do povo para os partidos políticos. Como consequência, restringem-se as escolhas disponíveis para os eleitores e dificulta-se a renovação da representação parlamentar.

5   Desmistificando alguns equívocos

Dois argumentos têm sido frequentemente apresentados em favor do voto em lista fechada. O primeiro está relacionado ao financiamento das campanhas eleitorais. O segundo consiste em afirmar que várias nações democráticas adotam o tal sistema. Mostrar-se-á nesta seção que ambos os argumentos são equivocados.

5.1   O financiamento das campanhas

Em setembro de 2015, o STF proibiu que as empresas fizessem doações para campanhas eleitorais. Segundo alguns políticos, essa decisão teria inviabilizado o financiamento das campanhas eleitorais dentro do sistema atual. Por tal motivo, a adoção do voto lista fechada seria simplesmente inevitável.

O argumento apresentado no parágrafo anterior está incorreto. Observe que a decisão do STF foi tomada em 2015. Desde então, ocorreu a eleição municipal de 2016, a qual não teve voto em lista fechada. Ou seja, o argumento de que a proibição do financiamento por parte das empresas impõe o voto em lista fechada é simplesmente falso.

Adicionalmente, o que realmente interessa para fins de campanha eleitoral não é o montante que um candidato tem a seu dispor e sim o montante disponível vis-à-vis os recursos dos candidatos competidores. Por exemplo, considere as seguintes situações: (i) o candidato a tem a seu dispor R$ 10 milhões e cada um dos demais candidatos dispõe desse mesmo valor e (ii) o candidato a tem a seu dispor R$ 100 mil e cada um dos demais candidatos também dispõe de R$ 100 mil. Relativamente ao cenário (i), na conjuntura (ii) todos precisarão fazer campanhas mais modestas. Contudo, não existe razão para a afirmar que é impossível fazer campanha na situação (ii). De forma similar, a decisão do STF impõe uma mesma restrição a todos os candidatos. Logo, ela não inviabilizou as campanhas. Ela simplesmente obriga aqueles políticos que recebiam recursos das empresas a redimensioná-las.

Quando um político afirma que “a decisão do STF inviabilizou as campanhas”, na verdade ele está dizendo o seguinte: “A decisão do STF fará com que em 2018 a minha campanha seja muito mais modesta do que em 2014. Desta forma, eu precisarei disputar a reeleição em um contexto totalmente diferente daquele em que eu me elegi. Evidentemente, isso é muito arriscado. Assim sendo, eu preciso de um mecanismo que garanta a minha reeleição e o voto em lista fechada é a solução perfeita para esse problema.”

5.2   Outros países

Em defesa do voto em lista fechada, frequentemente se alega que tal sistema é adotado em diversos países. Inclusive, ele é bastante comum nas ‘novas democracias’. Assim como a justificativa financeira, essa linha de raciocínio é falha.

Quando alguém apresenta uma relação de países que adotam o voto em lista fechada haverá algumas omissões notáveis. Afinal de contas, países como Estados Unidos, Canadá, Austrália e França não o adotam. Cabe então a seguinte indagação: existe alguma evidência de que o sistema político dos países que adotam o voto em lista fechada é superior ao dos países que não o fazem? Muito provavelmente, a resposta para essa pergunta é não.

Adicionalmente, a argumentação e as conclusões apresentadas na seção 4 não são específicas para o Brasil. Ou seja, elas são válidas para qualquer nação. Desta forma, o fato de um país, seja ele qual for, adotar o voto em lista fechada estabelece tão somente que os seus políticos tiveram sucesso em implantar um sistema que facilita a sua permanência no poder. Não estabelece, de maneira nenhuma, que o Brasil deveria adotar tal sistema.

O apelo às ‘novas democracias’ é simplesmente absurdo, pois para uma democracia a qualificação “nova” é necessariamente negativa. Afinal de contas, o sucesso desse regime político se mensura também pela sua longevidade.

Em suma, o fato de algumas nações utilizarem o sistema do voto em lista fechada não implica que o Brasil deva fazer o mesmo. Muitas outras nações não o fazem. Aqueles que desejam utilizar a experiência internacional como argumento a favor da adoção do sistema em lista fechada precisam apresentar evidências de que as nações que o adotam possuem um sistema político superior aos dos demais países.

6   O impacto da Lava-Jato e das demais operações

Até recentemente, o voto em lista fechada não era popular entre a maior parte dos congressistas brasileiros. Tanto que em junho de 2007 a Câmara rejeitou com relativa folga (252 vs. 181) a sua adoção. Assim sendo, é natural que se indague o que fez com que tantos políticos mudassem de opinião e abraçassem a proposta.

Conforme discutido na subseção 5.1, a decisão do STF de proibir que as empresas contribuam para o financiamento das campanhas eleitorais está por trás da súbita atração de vários políticos pelo voto em lista fechada. Porém, há que se levar em conta também um segundo fator: a Lava Jato e as demais operações que investigam os políticos.

Diversos deputados e senadores são (ou serão) alvo de inquéritos. Para um político investigado na Lava Jato (ou qualquer outra operação), a eleição de 2018 terá uma importância especial. Em circunstâncias normais, um político que é derrotado em uma eleição apenas fica sem mandato. Porém, a situação de um congressista investigado é muito mais crítica. Se ele for reeleito, então ele manterá o foro privilegiado e será investigado e julgado no STF. Tendo em vista a morosidade daquela corte, é provável que ocorra a prescrição das penas. Logo, a reeleição é quase que uma garantia de impunidade. Por outro lado, se não renovar o mandato, o político passará a ser julgado na primeira instância. E isso é quase que sinônimo de condenação e prisão.

Dito isto, para vários políticos há muito mais em jogo em 2018 do que haveria em qualquer outra eleição. Uma derrota não significará apenas ficar sem mandato. Muito possivelmente, um fracasso eleitoral implicará uma temporada atrás das grades. Não é surpreendente que o voto em lista fechada tenha se tornado muito mais atrativo para os nossos parlamentares.

Em síntese, alguns políticos adorariam que ocorresse uma anistia plena para todos os crimes presentemente investigados pela Lava Jato e por outras operações similares. Porém, até mesmo por razões jurídicas, não há como aprovar esse tipo de medida. O voto em lista fechada é um substituto para tal anistia. A sua implantação garantirá que vários daqueles que temem a ação da justiça mantenham os seus mandatos, escapando assim da rigorosa atuação de Sergio Moro e demais magistrados da primeira instância. Porém, conforme discutido nesse texto, o voto em lista fechada enfraquecerá a democracia. Ou seja, os parlamentares querem mandar para o povo brasileiro a conta da anistia implícita na proposta de voto em lista fechada.

7   Considerações finais

Se o voto em lista fechada for adotado, ocorrerá uma transferência de poder dos eleitores para os partidos. Essa transferência dificultará a renovação da representação parlamentar na Câmara dos Deputados e nos legislativos estaduais e municipais. Consequentemente, isso permitirá que alguns políticos se perenizem no poder. Essa perpetuação tornará improvável que eles venham a ser alcançados pela Lava Jato e por outras investigações em curso. Desta forma, o voto em lista fechada funcionará como espécie de anistia para aqueles que têm contas a prestar com a justiça.

Para o Brasil, a adoção do sistema de lista fechada será extremamente lesiva. Além de na prática anistiar alguns dos envolvidos em escândalos diversos, haverá uma redução da capacidade do eleitor escolher quem serão os seus representantes. Em outras palavras, o voto em lista fechada é um sério atentado à democracia.


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