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Sobre a relevância das constituições

Alexandre B. Cunha

Os EUA são a principal potência econômica do planeta, possuem uma democracia extremamente estável e desde 1788 são regidos pela mesma Constituição. Será que essa combinação é uma mera coincidência? Na visão deste autor, a resposta é negativa. Argumenta-se neste texto que as constituições podem ser importantes instrumentos para a manutenção de um regime democrático e para estimular o desenvolvimento econômico.

Inicialmente, há que se deixar claro que o fato de uma sociedade possuir uma constituição não é suficiente para garantir que ela será livre e próspera. Por exemplo, a União Soviética possuía uma carta magna, assim como o Brasil durante o Estado Novo. Presentemente, tiranias como Coréia do Norte, Cuba, Irã e Venezuela também possuem as suas. Na verdade, quase todos os países têm uma constituição. Dentre as poucas nações que não são regidas por um documento desse tipo (como Reino Unido e Israel), possivelmente todas têm um conjunto de normas e leis que na prática são equivalentes a uma constituição.

A identificação dos atributos de uma carta magna capaz de promover a liberdade e a prosperidade é uma tarefa complexa e que foge do escopo deste texto. De toda forma, não se pode deixar de mencionar que, tendo em vista que não existe democracia sem liberdade econômica, uma constituição genuinamente democrática precisa garantir que atividade econômica esteja organizada sob a forma capitalista. Adicionalmente, ela deve proteger direitos individuais básicos como a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, a liberdade de ter e portar armas, a liberdade religiosa etc.

Apesar da dificuldade de se caracterizar de forma precisa o conteúdo de uma boa carta magna, é possível realizar uma breve (e necessariamente incompleta) análise de como uma constituição democrática atua de forma a garantir a liberdade e contribuir para a prosperidade de uma nação. O restante deste texto é dedicado ao estudo dessa questão.

Um importante atributo de uma constituição em um regime democrático é a dificuldade de modificá-la (ou seja, de emendá-la). Considere o caso do Brasil. Uma emenda constitucional precisa ser aprovada por pelo menos 3/5 dos deputados federais e 3/5 dos senadores em duas votações em cada casa parlamentar. Essa barreira é consideravelmente mais elevada do que a maioria simples requerida para diversos outros tipos de legislação. Adicionalmente, alguns dos seus trechos não admitem emendas, como a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O processo de emendar a constituição é ainda mais difícil nos EUA. Dentre outras exigências, uma emenda aprovada pelo Congresso precisa ser ratificada por pelo menos 38 dos 50 estados. Consequentemente, a Constituição dos EUA, a qual entrou em vigor em 1788, foi emendada somente 27 vezes. Já a nossa Constituição, promulgada em 1988, presentemente tem 97 emendas.

A estabilidade da carta magna em um regime democrático permite que ela desempenhe três papéis fundamentais. O primeiro deles consiste em impedir a ocorrência da tirania da maioria, uma ameaça à democracia que foi motivo de grande apreensão para os instituidores (founding fathers) da república norte-americana. De fato, a maioria é bastante poderosa em uma democracia. Poderosa a ponto de estar apta, através da atuação dos seus representantes no parlamento, a incorporar muitas das suas opiniões nas normas legais. Por exemplo, se a maioria dos parlamentares brasileiros entender que certa conduta criminosa deve ter a sua pena aumentada, então eles têm o poder de transformar essa visão de mundo em lei. Por outro lado, em uma democracia a maioria não deve ter o poder de oprimir a minoria. A título de ilustração, suponha que 70% dos habitantes de um país sejam seguidores da uma dada religião. Se aquela é uma nação democrática, então não será possível criar um imposto que incidirá exclusivamente sobre aqueles 30% que não são adeptos da crença majoritária.

O segundo papel é similar ao primeiro. Além de impor limites ao poder da maioria, a constituição precisa impor limites ao poder do governo. Em particular, há que se impedir que o grupo político que estiver administrando o país consiga acumular forças de forma que ele esteja apto a converter a democracia em uma tirania. Evidentemente, um governante com pretensões ditatoriais poderá tentar aprovar normas legais que aumentem o seu poder. Desta forma, a dificuldade de se alterar o seu conteúdo permite que uma constituição funcione como barreira para projetos antidemocráticos desse tipo.

O terceiro papel consiste em estabelecer um conjunto de regras e normas estáveis. Isso proporciona um grau mínimo da previsibilidade necessária para o funcionamento da sociedade. Para ilustrar esse ponto, considere um hipotético país que não possui uma constituição. Os partidos A e B se alternam no poder. Na visão de A, o sistema de saúde deve ser exclusivamente público; para B, o sistema em questão deve ser exclusivamente privado. À medida que os partidos se alternam no poder, a legislação muda em consonância com as respectivas visões. Ou seja, em alguns anos as leis determinam que o sistema de saúde seja exclusivamente privado e em outros exclusivamente público. Como resultado, haverá um caos no sistema de saúde. Vale ressaltar que, para o problema em discussão, é irrelevante qual dos dois partidos tem a melhor proposta. O ponto central do exemplo é que as repetidas mudanças nas normas legais causam o colapso de todo um setor da economia.

Em síntese, a democracia requer a existência de um conjunto de regras estáveis, pois elas são necessárias para a organização da sociedade e para a proteção dos indivíduos contra o poder desfrutado pela maioria e pelos governantes. Tendo em vista que um dos atributos de uma constituição é justamente a dificuldade de alterá-la, esse tipo de documento é um instrumento adequado para o estabelecimento das regras em questão. Assim sendo, não é de surpreender que os EUA, caracterizados pela longevidade da sua Carta Magna, também sejam exemplo de prosperidade econômica e estabilidade democrática.


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