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Sim, o STF está obrigado a analisar o fatiamento

Alexandre B. Cunha

A controversa decisão do Senado de cassar o mandato de Dilma Rousseff sem a inabilitar para o exercício de cargos públicos suscitou o debate se tal veredito seria passível de revisão pelo STF. Argumenta-se neste texto que aquela corte está obrigada a analisar a questão.

O artigo 52 da Constituição Federal determina que a condenação do Presidente da República por crime de responsabilidade levará “[…] à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública“. Ou seja, o texto deixa claro que a pena é composta por ambos a perda do cargo e a inabilitação. Como a sentença proferida pelo Senado somente envolve a perda do cargo, ela é flagrantemente inconstitucional.

Por outro lado, o artigo 102 afirma que “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição […]“. Adicionalmente, o inciso I do mesmo artigo afirma que o STF deve julgar originariamente (ou seja, como o primeiro e último tribunal a avaliar a causa em questão) “a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual […]” (item a) e “[…] o mandado de segurança […] contra atos […] das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, e […] do próprio Supremo Tribunal Federal” (item b).

Dito isto, fica claro que o texto constitucional obriga o STF a analisar a potencial violação do artigo 52 quando se defrontar com o problema. Como a questão é tratada de forma cristalina na Constituição, são irrelevantes para o problema em análise quaisquer artigos, livros ou jurisprudências que afirmem que a sentença é irrecorrível. O mesmo vale para normas legais hierarquicamente inferiores à Constituição, como leis complementares, regimentos etc.

A sentença somente seria irrecorrível se algum trecho da carta de 1988 lhe atribuísse tal propriedade. Nesse caso, haveria um conflito interno à Constituição. Tomados conjuntamente, os artigos 52 e 102 determinam que sentença é passível de revisão, ao passo que outro(s) trecho(s) levaria(m) à conclusão oposta. Em tal situação, competiria ao STF resolver a contradição e decidir se a sentença é ou não definitiva.

Nenhum trecho da Constituição estabelece, de forma direta, o caráter final da sentença proferida pelo Senado. Porém, o próprio artigo 52 afirma que “Compete privativamente ao Senado Federal: I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade […]“. Será que esse trecho, em especial a expressão compete privativamente, não estabelece que a decisão do Senado é definitiva? Bom, se efetivamente existir um conflito, mostrar-se-á no próximo parágrafo que ele já foi equacionado por decisões recentes do próprio STF.

O artigo 51 da Constituição afirma que “Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I – autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República […]“. Não obstante, ao longo de 2015 o STF interveio em pelo menos duas ocasiões na tramitação do pedido de impeachment na Câmara. Obviamente, se expressão compete privativamente não foi suficiente para impedir que o STF sanasse ilegalidades que a corte enxergou nos procedimentos adotados pela Câmara, essa mesma expressão não pode fazer com que o tribunal se declare incompetente para avaliar a constitucionalidade da sentença proferida pelo Senado.

Há que se levar em conta também o artigo 86, o qual estipula que “Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade“. Será que este artigo é suficientemente claro sobre uma possível irrecorribilidade da sentença proferida pelo Senado para tornar sem efeito, para o caso em análise, todos os poderes que o artigo 102 da Constituição atribui ao STF? Ou seja, será que o trecho que afirma que o Presidente será submetido a julgamento […] perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade determina, a despeito do conteúdo do artigo 102, que uma sentença potencialmente inconstitucional não pode ser analisada pelo STF? É difícil conceber como essa interpretação possa prevalecer. Afinal de contas, o sucesso de tal argumento requer que se ache no texto constitucional algo que lá não está escrito.

Com intuito de ilustrar os argumentos apresentados até aqui, suponha que ao sentenciar Dilma Rousseff, o Senado tivesse determinado que ela (1) fosse afastada do cargo, (2) ficasse inabilitada por oito anos para o exercício de funções públicas e (3) cumprisse vinte anos de prisão em regime fechado. A inconstitucionalidade seria flagrante. Afinal de contas, o artigo 52 menciona que a pena é composta pelos itens (1) e (2). Alguém em sã consciência é capaz de imaginar que o STF se furtaria a analisar uma sentença composta pelos itens (1), (2) e (3)? É evidente que a resposta é um retumbante não. O STF analisaria a questão justamente porque a Constituição lhe dá poderes para proceder dessa forma. E se o tribunal tem poderes para avaliar a constitucionalidade de uma sentença composta por (1), (2) e (3), então ele tem poderes para fazer o mesmo quando a sentença é composta somente por (1).

Em síntese, o Senado tem o poder exclusivo de julgar o Presidente da República em casos de crime de responsabilidade desde que aquela casa parlamentar proceda em absoluta conformidade com a Constituição. A partir do momento em que ela ultrapassa tal limite, as suas ações e decisões são passíveis de revisão pelo STF, que é, na visão e nas palavras daqueles que redigiram a Constituição de 1988, o guardião da nossa lei maior. Por tal razão, aquele tribunal tem a obrigação de analisar se a sentença proferida pelo Senado é ou não constitucional.


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