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Lamento, mas o sucesso das medidas tomadas para conter a gripe espanhola não estabelece que o confinamento terá um impacto positivo sobre a economia

Alexandre B. Cunha

Os artigos científicos Políticas de Saúde Pública e Intensidade Epidêmica Durante a Pandemia de Gripe Espanhola em 1918 (Public Health Interventions and Epidemic Intensity During the 1918 Influenza Pandemic em inglês) e Intervenções Não Farmacêuticas Implementadas por Cidades Norte-Americanas Durante a Gripe Espanhola de 1918-1919 (Nonpharmaceutical Interventions Implemented by US Cities During the 1918-1919 Influenza Pandemic em inglês), ambos publicados em 2007, analisaram os efeitos das medidas de distanciamento social adotadas em diversas cidades norte-americanas em resposta ao surto de gripe espanhola que teve início em 1918. Todos os dois trabalhos concluíram que as medidas em questão ajudaram a conter a disseminação da doença.

Recentemente, os economistas Sergio Correia, Stephan Luck e Emil Verner estenderam a análise realizada nos dois artigos mencionados acima para a economia. Mais especificamente, no texto Pandemias Causam Recessões, Políticas de Saúde Pública Não Causam (Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not: Evidence from the 1918 Flu em inglês) os três autores estudaram os efeitos das ações de distanciamento social adotadas para combater a gripe espanhola sobre a atividade econômica. Eles concluíram que as ditas medidas contribuíram para reduzir o impacto adverso da pandemia sobre a atividade econômica.

Tendo em vista que ao longo deste ensaio serão feitas diversas menções a esse artigo, doravante se utilizará a sigla CLV (composta pela primeira letra do último nome de cada autor) para se referir ao mesmo. Pelo mesmo motivo, usar-se-á a sigla MLN (composta pela primeira letra do último nome de cada um dos três primeiros dos seus sete autores) quando se fizer menção ao texto Intervenções Não Farmacêuticas Implementadas por Cidades Norte-Americanas Durante a Gripe Espanhola de 1918-1919.

Tornou-se relativamente comum afirmar que as conclusões de CLV mostram que o confinamento contribuirá para a recuperação da economia brasileira. Por exemplo, reportagem publicada pelo jornal O Globo claramente abraça essa posição. O mesmo argumento está presente em um editorial do mesmo jornal, assim como em um texto disponível em um site de extrema esquerda. Apesar de não citar CLV explicitamente, o ex-ministro da Fazenda e atual secretário da Fazenda do estado de São Paulo Henrique Meirelles se manifestou de forma similar. Bom, lamento informar as conclusões do referido trabalho não permitem que se afirme que o confinamento terá um impacto positivo sobre o PIB e outros indicadores econômicos.

É importante deixar claro que não se está a questionar as conclusões de CLV, pois muito provavelmente elas estão corretas. O que se afirma aqui é que as conclusões de CLV não sugerem que o confinamento contribui para a recuperação econômica. O restante deste texto é dedicado ao esclarecimento desse sutil ponto.

Um ponto central na presente discussão é que não existem evidências de que um confinamento como os que ocorreram neste ano tenha sido uma das medidas adotadas para combater a gripe espanhola nos EUA. Tanto que se encerrou post anterior deste blog com a seguinte afirmativa: “a evidência disponível sugere que jamais existiu um confinamento como aquele presentemente em curso no Brasil e em outras nações”. De fato, no final da página 6 e começo da página 7 de CVL está escrito o seguinte (tradução deste autor):

As políticas de saúde pública adotadas em 1918 são similares as presentemente adotadas em resposta à pandemia da Covid-19; contudo, as medidas de 1918 não foram tão abrangentes no que diz respeito ao fechamento de setores econômicos não essenciais.

O trecho acima se encerra com uma chamada para uma nota de pé-de-pagina, a qual tem o seguinte conteúdo (tradução deste autor):

Ao invés de impor um fechamento generalizado de lojas e outros estabelecimentos, adotaram-se horários escalonados de forma a evitar aglomerações no sistema de transporte público.

Essas duas passagens são suficientes para estabelecer que um confinamento generalizado não foi umas das medidas consideradas em CVL. Porém, tendo em vista a relevância desse problema específico, convém que a sua análise seja aprofundada. Conforme mencionado no segundo parágrafo da página 9 de CVL, as medidas consideradas nesse artigo são justamente aquelas documentadas em MLN. As ditas medidas são as seguintes (entre parênteses a expressão utilizada no texto original):
(1) fechamento de escolas (school closure);
(2) isolamento (isolation);
(3) quarentena (quarentine);
(4) proibição de aglomerações públicas (public gathering bans).
A medida (1) é de fácil compreensão. A (2) é o isolamento de pessoas sabidamente doentes, ao passo que a quarentena em (3) se aplicava somente aos indivíduos que possivelmente haviam tido contato com algum enfermo. Observe que não se fala no isolamento de pessoas sadias ou que não eram suspeitas de portar o vírus. Assim sendo, está claro que as medidas (1), (2) e (3) não são suficientes para se concluir que houve um confinamento generalizado.

O item (4) requer uma análise mais detalhada. De acordo com as informações disponíveis na página 645 de MLN, essa medida tipicamente envolveu o fechamento de bares/tavernas e de locais públicos de entretenimento e o cancelamento de eventos esportivos; adicionalmente, encontros em locais fechados foram proibidos ou realocados para espaços abertos, enquanto eventos em espaços abertos não necessariamente foram suspensos. Também se menciona explicitamente que não se localizaram registros da proibição do comércio de alimentos e alguns outros itens (grocery em inglês) e de medicamentos. Ademais, há referências em MLN a fechamento de setores selecionados da economia e de mudanças na regulamentação das atividades; porém, não há uma menção a uma interrupção generalizada do comércio ou de outro setor.

Dito tudo isto, não se encontra nem em CVL nem em MLN evidências de que pessoas sadias tenham sido enclausuradas em suas residências ou que haja ocorrido um fechamento generalizado e de longa duração do comércio. Em outras palavras, nenhum dos dois artigos sugere que se tenha adotado, para combater a gripe espanhola nos EUA, um confinamento similar aos que se verificaram neste ano em vários locais do planeta.

Resumindo, CVL apresenta evidência de que algumas medidas de distanciamento social implementadas em diversas localidades norte-americanas para combater a gripe espanhola de 1918 também contribuíram para a posterior retomada da atividade econômica. Todavia, as referidas medidas não envolveram um confinamento similar àqueles implementados neste ano. Consequentemente, não há como se afirmar que a evidência apresentada em CVL estabelece que um confinamento generalizado tem impactos positivos sobre a economia. Inclusive, o próprio artigo não contém tal alegação.


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