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Sobre o papel dos juízes em uma democracia

Alexandre B. Cunha

O norte-americano Antonin Scalia se tornou juiz da Suprema Corte dos EUA em setembro de 1986. Ele permaneceu no cargo até fevereiro de 2016, quando faleceu subitamente. Afirmar que ele foi um excelente juiz seria subestimar o seu legado, pois possivelmente Scalia foi o mais influente jurista dos Estados Unidos nos últimos cinquenta anos.

Antonin Scalia foi o principal responsável pelo renascimento da abordagem conhecida como originalismo. De acordo com essa doutrina, a função de um juiz consiste em interpretar e aplicar as leis, sendo que a interpretação deve ser a mais fiel possível ao sentido que os textos legais possuíam originalmente (ou seja, no momento em que foram redigidos).

Antonin Scalia, juiz da Suprema Corte dos EUA e um dos mais influentes juristas norte-americanos. Fotógrafo: Steve Petteway. Fonte: Wikimedia Commons.

A filosofia acima delineada está por trás da afirmação de que “o juiz que sempre fica satisfeito com as suas decisões é um mau juiz”, feita por Antonin Scalia em uma palestra proferida em janeiro de 2013. Como um magistrado deve aplicar fielmente as leis e essas necessariamente serão imperfeitas, é inevitável que a repetida aplicação das mesmas faça com que cedo ou tarde ele tome uma decisão que é, aos seus olhos, indesejável. Assim sendo, o juiz que está sempre feliz com as próprias decisões falha em desempenhar a sua principal tarefa, que consiste exatamente em aplicar as leis (sejam elas boas ou não).

Em um primeiro momento, a ideia de que um juiz deve aplicar uma lei mesmo que isso leve a um resultado indesejável pode parecer absurda. Contudo, esse procedimento é uma consequência inevitável de um princípio fundamental do regime democrático: a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Cada um desses três poderes tem atribuições específicas. E, como o próprio nome sugere, criar, modificar e aprovar leis é uma competência do poder legislativo.

O regime democrático moderno, que tem como melhor exemplo a República dos Estados Unidos, foi uma fenomenal obra de engenharia política. E, como qualquer grande obra, possui varias características que, em um primeiro momento, podem passar despercebidas. Conforme se discute abaixo, duas delas são centrais para o assunto abordado neste ensaio.

Observe que (1) os integrantes do legislativo se submetem ao crivo popular através do voto, ao passo que (2) os magistrados possuem diversas proteções (como estabilidade no cargo). O item (1) garante que o eleitorado tenha influência sobre o processo de elaboração das leis, pois um parlamentar que votar a favor de um projeto de lei impopular aumentará o risco de não ser reconduzido ao cargo na próxima eleição. Por outro lado, (2) permite que um juiz profira decisões que sejam impopulares e/ou contrárias aos interesses de indivíduos poderosos.

A título de absurdo, suponha que, ao contrário da visão de Antonin Scalia, os magistrados possam modificar ou ignorar as leis ao proferirem as suas decisões. Ora, na prática os magistrados estarão legislando. Teremos então a seguinte situação: haverá indivíduos (os juízes) imunes à pressão popular e que dificilmente serão removidos dos seus cargos definindo o conteúdo das normas legais quase que a seu bel-prazer. Contudo, isso é uma aberração autoritária, pois em uma democracia, o processo de criação das leis precisa estar submetido ao controle do voto.

Como bem disse Winston Churchill, apesar de imperfeito o regime democrático é a melhor forma de governo. E, dentro desse regime, o papel de um juiz é aplicar fielmente as leis. No momento em que os magistrados se põem a criar leis, a sociedade se afasta da democracia. Assim sendo, não é de surpreender que após muito legislarem, os juízes do STF tenham se outorgado até mesmo o poder de censurar veículos de imprensa e cidadãos brasileiros.


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