Rio de Janeiro, . | Economia, Governo, Saúde


Escolhas em tempos de Covid-19

Alexandre B. Cunha

Em sua imortal obra A Odisseia, Homero descreveu a perigosa jornada de retorno ao lar, após a guerra de Tróia, do mitológico guerreiro Ulisses e dos combatentes gregos sob o seu comando. Em uma das etapas da viagem, a sua embarcação precisava cruzar o estreito de Messina. Uma das margens do estreito era habitada por Cila, um monstro com seis cabeças que devorava os tripulantes dos navios que se aproximassem o suficiente para serem capturados. O outro lado não era menos perigoso, pois lá estava Caribdes, um monstro marinho que criava redemoinhos fortes o bastante para sugar as embarcações que ficassem fora do alcance de Cila. Caribdes era o perigo maior, pois Ulisses e todos os seus companheiros pereceriam caso o navio fosse engolido pelo redemoinho, ao passo que cada uma das seis cabeças de Cila capturaria no máximo um homem. Assim sendo, Ulisses tomou a angustiante decisão de navegar próximo a Cila. Conforme antecipado, seis soldados pereceram e Ulisses e os demais sobreviventes puderam dar continuidade à difícil viagem de volta para casa.

Embarcação de Ulisses passa entre Cila e Caribdes. Pintor: Alessandro Allori. Fonte: Biblioteca Nacional da França.

A pandemia da Covid-19 nos colocou na situação de tomar decisões extremamente difíceis. A exemplo do dilema enfrentado por Ulisses diante de Cila e Caribdes, na presente situação todas as opções que estão disponíveis levam a consequências trágicas. Justamente por isso é preciso enxergar claramente a dura realidade à nossa frente, identificar corretamente os sacrifícios impostos por cada uma das possíveis escolhas e comparar os referidos sacrifícios de forma a selecionar o curso de ação que impõe o menor ônus total. Espero que este artigo contribua, mesmo que modestamente, para tanto.

O ser humano está sempre fazendo escolhas. Esse processo de escolha também é conhecido como tomada de decisão. A título de ilustração, considere a situação deste autor um pouco antes de iniciar a elaboração deste texto. Ele se defrontou com a escolha entre escrever o artigo ou alocar o tempo que seria requerido por tal atividade para a leitura de algum livro que fosse do seu interesse. De forma similar, neste exato momento o leitor pode optar entre continuar a ler este texto ou utilizar o seu tempo para alguma outra atividade. Além dos indivíduos, firmas e governos também tomam decisões. Por exemplo, em um dia qualquer o gerente de um restaurante deve escolher a quantidade de refeições que serão preparadas. Similarmente, o prefeito de uma cidade talvez tenha que selecionar o bairro no qual se localizará uma nova escola que será construída. Em síntese, decisões são tomadas em locais e contextos diversos e fazem parte do cotidiano dos indivíduos e das organizações.

Para que seja possível fazer uma boa escolha, é preciso que se conheçam minimamente os compromissos relevantes para o problema em análise. Por exemplo, suponha que o senhor X está decidindo em que bairro irá residir e que ele leve em consideração somente a distância para o seu local de trabalho e o valor do aluguel (quanto mais afastado do trabalho, mais barato). Desta forma, X se defronta com um compromisso entre o valor do aluguel e a proximidade do trabalho. Assuma que ele priorize o aluguel barato e que após alguns meses se arrependa da decisão, pois as alternativas de lazer e as opções de comércio da vizinhança escolhida são extremamente limitadas. O equívoco de X foi decorrente da sua visão incompleta dos compromissos com os quais se defrontava. Fatores como comércio, lazer, transporte e segurança também deveriam ter sido ponderados. Ou seja, a decisão deveria ter contemplado outros elementos além do valor do aluguel e da distância para o trabalho.

O exemplo acima deixa claro que as escolhas do mundo real usualmente envolvem mais do que dois aspectos. E esse é o principal problema na forma em que usualmente se coloca a discussão sobre a política de confinamento. O debate é apresentado como se a escolha fosse exclusivamente entre “salvar a saúde” e “salvar a economia”. Contudo, a questão é muito mais complexa. Conforme discutido em dois textos anteriores deste blog, os impactos adversos do confinamento sobre a economia terminarão por prejudicar a saúde. Desta forma, a decisão não é exclusivamente entre “salvar a saúde” e “salvar a economia”; há também uma escolha entre proteger a saúde presente e proteger a saúde futura. Ignorar esse fato não contribui para que sejam feitas boas escolhas.

Evidentemente, qualquer avaliação dos efeitos positivos e negativos do confinamento precisa levar em consideração o compromisso acima mencionado. Colocando de outra forma, mesmo que fosse possível fazer uma afirmativa do tipo “o confinamento salvou 10 mil vidas”, isso seria insuficiente para aquilatar o mérito da referida política. A sua correta avaliação requer, dentre outras coisas, que se compare o número de vidas que serão salvas neste ano com o número de vidas que serão perdidas no futuro devido à crise econômica.

Há um bom motivo para a ênfase aplicada à expressão “dentre outras coisas” no parágrafo anterior. De fato, não é suficiente comparar “vidas salvas no presente” com “vidas perdidas no futuro” para avaliar a política de confinamento. Inegavelmente, a vida é algo extremamente precioso. Todavia, ao contrário do que se tem assumido ao debater o confinamento, a sua defesa não justifica que se ignorem outros elementos que também são relevantes para a sociedade. E, conforme se discute abaixo, isso é verdade tanto para os indivíduos como para os governos e, consequentemente, também para a sociedade.

Para tornar a discussão mais concreta, considere a foto abaixo, na qual dois trabalhadores estão limpando, pelo exterior, as janelas de um edifício.

Trabalhadores limpando janelas em um prédio na cidade de Ho Chi Minh, Vietnã. Fotógrafo: Tiendq. Fonte: Flickr.

Episódios como esse ocorrem com frequência por todo planeta. Inclusive, muitas outras fotos similares a essa estão disponíveis no Google Images e no Flickr. Se a defesa da vida humana fosse razão para que se ignorassem outras questões, então as janelas da foto deveriam ser lavadas de forma distinta ou simplesmente não serem limpas. Mais ainda: a construção de um prédio elevado coloca em risco as vidas de muitos operários que nela trabalham. Fosse a preocupação com as vidas capaz de anular completamente todos os outros objetivos, então deveríamos construir tão somente edificações com um único pavimento.

O exemplo acima ilustra que nem sempre a nossa sociedade protege a vida de forma absoluta. E isso não decorre exclusivamente de escolhas feitas por indivíduos e organizações privadas. Os governos procedem da mesma maneira. Tanto que, seja qual for o país considerado, investimentos adicionais poderiam aprimorar o seu sistema de saúde. Por outro lado, todo e qualquer governo realiza gastos que não são voltados para a saúde (por exemplo, museus, escolas, universidades e parques). Se realmente houvesse o objetivo de proteger a vida a despeito de outras metas, então tais gastos públicos deveriam ser redirecionados para a saúde.

As viagens aéreas também contribuem para a compreensão do problema em análise. Sabidamente, o avião é um meio de transporte seguro. Infelizmente, ainda assim acidentes aéreos acontecem e são usualmente fatais. Desta forma, nenhuma pessoa que se preocupasse com a própria vida acima de tudo faria uma viagem desse tipo para fins de recreação. Afinal de contas, se essa pessoa realmente acreditasse que a sua vida tem que ser protegida de toda e qualquer ameaça, então ela não se colocaria diante de um risco, ainda que pequeno, de um acidente fatal apenas para realizar uma viagem de turismo e/ou lazer.

Dito tudo isto, a discussão acima estabelecesse que, ao contrário do que se tem sugerido nas últimas semanas, a preocupação com a vida não anula complemente o peso de outros objetivos. Isso pode ser desagradável e chocante, mas é o que se conclui quando se analisam o nosso comportamento e alguns aspectos do nosso cotidiano. E tal conclusão tem uma importante implicação: a avaliação da política de confinamento requer que se comparem as vidas salvas no presente pela referida política com o seu impacto adverso sobre as vidas futuras e também sobre outros itens que, apesar de não serem tão importantes quanto as vidas, também são relevantes para a sociedade. E, conforme este autor planejar discutir posteriormente em outro texto, o resultado de tal avaliação está longe de ser favorável ao confinamento.


notificações por email   Cadastre-se para ser notificado por email sempre que um novo texto for disponibilizado no blog.

compartilhe este texto