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A sutil relação entre a eficácia e a preponderância de uma constituição

Alexandre B. Cunha

Conforme argumentado em um texto anterior, uma boa constituição deve desempenhar três importantes funções: (i) impedir a ocorrência de uma tirania da maioria, (ii) impor limites ao poder do governo e (iii) definir um conjunto regras e normas estáveis necessárias para o bom funcionamento da sociedade. Desta forma, esse tipo de documento é fundamental para a existência de sociedades livres, democráticas e prósperas.

Um dos atributos necessários para que as constituições desempenhem as funções acima listadas é dificuldade em alterá-las. Os requisitos para que uma carta magna seja modificada variam de país para país. Usualmente, eles envolvem pelo menos uma ampla maioria (por exemplo, 2/3 ou 3/5) dos congressistas. Com o intuito de tornar a discussão mais concreta, analisa-se nos próximos dois parágrafos o processo de modificação da Constituição dos EUA.

Há duas maneiras de se propor alterações na Carta Magna daquele país. A primeira delas consiste em convocar uma convenção constituinte; ou seja, uma assembleia que terá como finalidade única redigir propostas de emendas ou mesmo uma nova constituição. A sua convocação pode se dar de duas formas: (i) por iniciativa do Congresso, a qual deve ser aprovada por 2/3 dos deputados e 2/3 dos senadores ou (ii) por iniciativa dos estados, a qual deve ser aprovada por 2/3 dos legislativos locais. A segunda maneira requer que uma proposta de emenda seja aprovada por pelo menos 2/3 dos deputados e 2/3 dos senadores.

Independentemente da proposta de alteração ter sido apresentada através da primeira ou da segunda maneira, ela somente entrará em vigor após ser ratificada pelo legislativo de pelos menos 3/4 dos estados norte-americanos. Como os EUA presentemente possuem 50 estados, há que se obter a aprovação de 38 deles. Definitivamente, está longe de ser uma tarefa trivial conseguir o apoio político necessário para se modificar a Constituição dos Estados Unidos.

Considere agora a seguinte situação hipotética. A Lei X, que não é de caráter constitucional, foi aprovada pela Câmara e pelo Senado dos EUA por maioria absoluta (ou seja, metade mais um) dos parlamentares de cada uma dessas duas casas. Essa legislação determina que em períodos de campanha eleitoral, toda e qualquer matéria a ser publicada em jornais impressos e em sites de notícias precisará ser previamente aprovada por uma comissão suprapartidária encarregada de verificar se a matéria em questão não é prejudicial aos interesses de algum candidato. Todavia, a Primeira Emenda à Constituição dos EUA determina de forma inequívoca que o Congresso norte-americano não pode estabelecer nenhuma lei que imponha restrições à liberdade de expressão e de imprensa. Ora, se a Lei X for implantada, para fins práticos o Congresso terá logrado modificar a Constituição sem que a correspondente alteração tenha sido submetida ao longo e árduo processo descrito acima!

Claramente, a Lei X é inconstitucional e por tal motivo ela é inválida. E essa é uma regra geral que existe nos EUA e em muitas outras nações democráticas: toda e qualquer norma legal que viole a constituição pode ser declarada sem efeito, mesmo que tenha sido aprovada pelo Poder Legislativo. Caso contrário, modificar a constituição seria uma tarefa relativamente simples e ela não estaria apta a desempenhar os papéis discutidos no texto Sobre a relevância das constituições. Em outras palavras, a eficácia de uma constituição requer que haja uma preponderância da mesma sobre todas as demais leis.

A análise acima suscita a seguinte indagação: a quem compete verificar se uma norma legal está em consonância com a constituição? Essa questão foi respondida de forma admirável pela Suprema Corte dos EUA em 1803. Porém, isso é assunto para um texto futuro.


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