Rio de Janeiro, . | Economia, Governo, Saúde


A ineficiência do confinamento adotado no Brasil

Alexandre B. Cunha

Argumenta-se neste texto que política de confinamento adotado no Brasil é ineficiente pois (1) existe uma política alternativa capaz de salvar o mesmo número de vidas com um menor custo em termos de empregos perdidos e outros ônus econômicos. Pode-se também dizer que a sua ineficiência decorre do fato que (2) existe uma política alternativa com o mesmo custo em termos de empregos perdidos e outros ônus econômicos capaz de salvar um maior número de vidas. Com bem sabem os estudiosos da Ciência Econômica, as afirmativas (1) e (2) são equivalentes, no sentido de que se (1) é verdade, então (2) é verdade e vice-versa. Tendo em vista que, ao menos na visão deste autor, é um pouco mais simples estabelecer a veracidade de (1) do que a de (2), a discussão que se segue tem como objetivo mostrar que primeira afirmativa está correta. Contudo, tendo em vista a acima mencionada equivalência, tal procedimento também estabelece a veracidade de (2).

Queimando dinheiro. Fotógrafo: Jp Valery. Fonte: Unsplash

Considere a situação hipotética descrita a seguir. O senhor P tem dois filhos (gêmeos) adolescentes chamados B e V. O primeiro adora jogar basquete, ao passo que seu irmão é apaixonado por vôlei. Como eles farão aniversário daqui a alguns dias, o seu pai deseja presenteá-los. Tendo em vista os gostos dos rapazes, a melhor opção é (i) comprar uma bola de basquete para B e uma bola de vôlei para V. Por simplicidade, assuma que as bolas tem o mesmo preço. Suponha que por um motivo qualquer se introduza a exigência de que os presentes precisam ser iguais. As opções agora disponíveis são as seguintes: (ii) comprar duas bolas de basquete, uma para cada irmão; (iii) comprar duas bolas de vôlei, uma para cada irmão; (iv) comprar quatro bolas (duas de basquete e duas de volêi) e presentear cada jovem com duas bolas (uma de cada tipo). Se P escolher (ii) ou (iii), então um dos dois gêmeos ficará desapontado. Para atingir o seu objetivo de agradar ambos B e V, o pai deve optar por (iv). Comparativamente à opção (i), (iv) tem a desvantagem de custar o dobro. Pode-se então concluir que a exigência de que os presentes sejam idênticos faz com que o gasto necessário para agradar os dois irmãos dobre.

O ponto central nesse exemplo é que a restrição de que B e V sejam tratados exatamente da mesma forma impede que cada presente seja adaptado ao gosto do filho que irá recebê-lo. Tem-se assim uma ilustração daquilo que se denomina, para os fins deste texto, de Regra da Adequação, segundo a qual o procedimento de adequar uma ação ao seu ponto de aplicação frequentemente reduz o custo de atingir o objetivo subjacente à referida ação. No exemplo acima, presentear um dos irmãos é uma ação, cada um dos jovens é um ponto de aplicação, agradá-los é o objetivo e levar em conta as preferências de cada um deles consiste em adequar a ação. Vale ressaltar que a Regra da Adequação aqui enunciada é uma variação trivial daquele que é conhecido como o Princípio do Direcionamento (Principle of Targeting em inglês) na literatura dedicada ao estudo das políticas públicas.

Tendo vista a importância da Regra da Adequação para o presente texto, ilustra-se a sua aplicação com dois exemplos que envolvem políticas governamentais. Primeiro, suponha que o exército de um país qualquer deseja que providenciar botas para os seus 100 mil integrantes. Sabe-se que o tamanho dos pés dos soldados varia de 41 até 44. Uma desnecessariamente cara maneira de atingir o objetivo de calçá-los consiste em fornecer para cada um deles quatro pares de botas, cada par de tamanho diferente (41, 42, 43 e 44). Obviamente, é preferível adequar a ação de providenciar os calçados ao tamanho dos pés de cada indivíduo. Ou seja, devem ser levantadas informações sobre o tamanho dos pés de cada um dos militares de forma ser possível fornecer para cada um deles um par de botas consistente com o seu número.

Com relação ao segundo exemplo, assuma que o governo federal irá construir uma nova escola em cada cidade do Brasil. Seria uma péssima escolha adotar o mesmo projeto para todas as escolas. Afinal de contas, as escolas localizadas na Serra Gaúcha se beneficiariam de um sistema de calefação; porém, tal recurso é completamente inútil em boa parte do território nacional. Ademais, em grandes cidades como São Paulo o elevado preço dos terrenos praticamente impõe que o prédio da escola tenha vários andares; por outro lado, em pequenas cidades possivelmente a opção de menor custo é construção de estabelecimentos com um único pavimento. Evidentemente, muito outros fatores poderiam ser listados para estabelecer que adotar um único projeto para todo o país geraria custos desnecessários. Em outras palavras, é possível reduzir o custo da iniciativa em análise através da adequação da ação de construir uma escola às características da sua localização.

Um equívoco fundamental da política de confinamento adotada no Brasil (e também em outros países) é que ela simplesmente ignorou o preceito de que é desejável adequar uma ação ao seu ponto de aplicação. A título de ilustração, considere como as mortes em decorrência da Covid-19 variam de acordo com a idade. Conforme relatado por Edward Livingston e Karen Bucher na nota Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) in Italy, até o dia 15 de março deste ano haviam sido registrados 22.512 casos de Covid-19 na Itália, os quais tinham levado a 1.625 óbitos. Assim sendo, a taxa de letalidade (i.e., percentagem dos infectados que vieram a falecer) do vírus chinês era igual a 7,2%. Todavia, a referida taxa varia consideravelmente quando se leva em conta a idade dos infectados. De fato, das já mencionadas 1.625 mortes, em apenas uma delas não se registrou a idade da vítima. A tabela que se segue, a qual é baseada em um quadro da nota acima citada, contém algumas informações referentes aos demais 1.624 óbitos.

Tabela 1
Itália: mortes e taxa de letalidade por
faixa etária devido à Covid-19 até 15/03/20020

Fonte: Livingston E., Bucher K. (2020) Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) in Italy. JAMA. 2020;323(14):1335. doi:10.1001/jama.2020.4344.

As estatísticas disponíveis na Tabela 1 sugerem que (a) a Covid-19 é mais letal para as pessoas de idade avançada e (b) dificilmente o vírus chinês é capaz de causar a morte de uma criança ou de um adolescente ou de um jovem adulto. Outros levantamentos confirmam a correção das afirmativas (a) e (b). Por exemplo, as informações contidas na reportagem Conheça faixa etária dos mortos por Covid-19 no Brasil, Itália, Espanha e EUA são absolutamente consistentes com essas duas conclusões.

A variabilidade, de acordo com a idade do infectado, da letalidade da Covid-19 tem uma importante consequência para as políticas públicas. Para ilustrar esse ponto, lança-se mão da já discutida Regra da Adequação. Suponha que em decorrência da pandemia presentemente em curso um governo esteja elaborando uma norma de isolamento social. Em tal contexto, a ação é a norma de isolamento e cada pessoa sujeita à norma é um ponto de aplicação, ao passo que adequar a ação consiste em levar em conta a idade de cada indivíduo. Tendo em vista as informações contidas na Tabela 1, o isolamento deve ser muito mais rígido para os idosos do que para as crianças. De fato, se as crianças e os idosos forem tratados da mesma forma, então das duas uma: ou norma não protege suficientemente os idosos ou ela submete as crianças a restrições excessivas. Em outras palavras, no exemplo em discussão, a adequação do isolamento requer que as crianças e os idosos sejam tratados de forma diferenciada (pois os grupos se defrontam com taxas de letalidade consideravelmente distintas).

Recente estudo dos economistas Daron Acemoglu, Victor Chernozhukov, Iván Werning e Michael D. Whinston, aborda justamente a questão aqui discutida. Eles mostram que um confinamento uniforme (ou seja, um confinamento que impões as mesmas restrições para todas as pessoas) impõe perdas desnecessárias quando comparado a um confinamento que leva em conta o fato de que a taxa de letalidade da Covid-19 não é a mesma para todos os grupos etários. No modelo adotado no artigo, um confinamento uniforme que faz com que no máximo 0,2% dos adultos venha a morrer devido ao vírus chinês causa uma redução de 37,3% do PIB. Por outro lado, para atingir um mesmo patamar de mortes, uma política que impõe um confinamento mais rigoroso para os idosos do que para os jovens leva a uma queda no PIB de 24,8%. Como 37,3 – 24,8 = 12,5, pode se concluir que a aplicação da Regra da Adequação permite que se preserve 12,5% do PIB sem que isso cause uma elevação no número de mortes.

O artigo que serviu de fonte para a Tabela 1 foi publicado no dia 17 de março deste ano, ao passo que o Princípio do Direcionamento (do qual a Regra da Adequação é uma variação trivial) é conhecido dos economistas pelo menos desde 1985. Logo, não foi por falta de informação o Brasil deixou de adotar uma política que, quando comparada à que está em vigor, fosse simultaneamente tão eficaz no combate à pandemia e menos gravosa para o emprego e a renda dos seus cidadãos. Ou, tendo em vista discussão no primeiro parágrafo deste texto, teria sido possível salvar mais vidas incorrendo no mesmo custo em termos de emprego e renda.


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